
Na verdade, o sabonete era do meu avô e ficava no banheiro
que tinha do lado de fora da casa. E ele só aparecia magicamente no verão. No
inverno a gente devia usar um sabonete regular, com cheiro de sabonete
branco mesmo. Mas no verão não...no verão era especial! Me sentia até mais
limpinha! Depois me enxugava e ia colher mexerica na árvore e chupar com sal.
Mais sal do que laranja de fato. Comia escondidinha lá no terreno, onde tinha
uma casa que não tinha janelas e nem portas. E cantava baixinho: “Era uma casa
muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...”. Naquela época eu não tinha
medo de passarinhos e convivia bem com as galinhas que me bicavam os dedos e
roubavam minhas mexericas.
Eu corria com o cachorro da minha avó e me escondia atrás do
sofá. Da janela, eu via meu avô com uma bacia imensa de peixes na cabeça,
voltando da pescaria, e entregando para os vizinhos. No fim do dia, ele cortava
mortadelas em cubinhos e fritava. Depois jogava limão por cima e espetava
palitinhos. Era o aperitivo dos adultos, que sempre se reuniam para jogar
buraco na mesa da cozinha.
Meu toque de recolher era depois que passava o
último programa de auditório do SBT. Até hoje não gosto da música do Pintinho
amarelinho. Era a hora de ir dormir, mesmo quando todo mundo ainda dava risadas
na cozinha e o cheiro de mortadela ficava mais forte. Eu queria ficar. Então me
sentava escondida no topo da escada e dava risadinhas, achando que ninguém
estava me vendo. Meu avô me chamava de canto e me dava um palito com o maior
pedaço da mortadela. Eu achava que era um tesourinho e comia lambendo os dedos.
Depois me conformava e ia dormir tranquila. O barulho das vozes no andar de
baixo me confortava, como se os adultos vigiassem a madrugada.
Pão na chapa, chá preto e a enceradeira ligada eram minha
rotina de manhã. Barulho bom de que a vida já estava acontecendo outra vez. Eu
me lembro de tudo. Recordar do cheiro, do gosto e dos sons doem muito. Porque
toda a sinestesia das minhas lembranças me levam ao dia em que o barulho
cessou.
O telefone uma madrugada tocou, meu avô foi paralisado no
tempo e a gente voltou naquela casa só mais uma vez. E tava tudo quieto, sem
cheiro, sem gosto de mortadela. Lembro dos armários vazios, do galinheiro sem
um piu e de me despedir daquilo tudo. Subi as escadas correndo, percorri cada
cantinho gritando “Adeus! Adeus!”. Não lembro se chorei. Passei pelo banheiro
do quintal e senti o cheiro de limão pelo último verão.
E hoje, 23 anos depois, eu comprei um maldito sabonete de
limão em promoção. É verão e tudo que eu queria era ter memória seletiva.
Deixar tudo ali, em foto, só revisitar quando eu abrisse o álbum e quisesse
mesmo ver. Mas eu sou sinestésica, um armário de lembranças pesadas. Eu até
tento dizer adeus, mas elas insistem em viver desbotadas aqui dentro, só
esperando um pedaço de mortadela frita, um sabonete de limão para correr pra
fora e me lembrar que o tempo passa com crueldade.
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