4/16/2014 07:33:00 PM

No verão

Por Fernanda Tsuji |

Era o cheiro do sabonete de limão, incrivelmente amarelo, que me dizia que o verão tinha chegado. Mais do que andar descalça pelo chão de ladrilhos quebradinhos, mais do tomar chicabon no fim do dia. Era o cheirinho azedinho e a sensação de refrescância (que hoje desconfio, era muito mais inventada pela minha mãe do que de fato eu sentia), que me dizia que os termômetros estavam batendo os 35.

Na verdade, o sabonete era do meu avô e ficava no banheiro que tinha do lado de fora da casa. E ele só aparecia magicamente no verão. No inverno a gente devia usar um sabonete regular, com cheiro de sabonete branco mesmo. Mas no verão não...no verão era especial! Me sentia até mais limpinha! Depois me enxugava e ia colher mexerica na árvore e chupar com sal. Mais sal do que laranja de fato. Comia escondidinha lá no terreno, onde tinha uma casa que não tinha janelas e nem portas. E cantava baixinho: “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...”. Naquela época eu não tinha medo de passarinhos e convivia bem com as galinhas que me bicavam os dedos e roubavam minhas mexericas.

Eu corria com o cachorro da minha avó e me escondia atrás do sofá. Da janela, eu via meu avô com uma bacia imensa de peixes na cabeça, voltando da pescaria, e entregando para os vizinhos. No fim do dia, ele cortava mortadelas em cubinhos e fritava. Depois jogava limão por cima e espetava palitinhos. Era o aperitivo dos adultos, que sempre se reuniam para jogar buraco na mesa da cozinha. 

Meu toque de recolher era depois que passava o último programa de auditório do SBT. Até hoje não gosto da música do Pintinho amarelinho. Era a hora de ir dormir, mesmo quando todo mundo ainda dava risadas na cozinha e o cheiro de mortadela ficava mais forte. Eu queria ficar. Então me sentava escondida no topo da escada e dava risadinhas, achando que ninguém estava me vendo. Meu avô me chamava de canto e me dava um palito com o maior pedaço da mortadela. Eu achava que era um tesourinho e comia lambendo os dedos. Depois me conformava e ia dormir tranquila. O barulho das vozes no andar de baixo me confortava, como se os adultos vigiassem a madrugada.

Pão na chapa, chá preto e a enceradeira ligada eram minha rotina de manhã. Barulho bom de que a vida já estava acontecendo outra vez. Eu me lembro de tudo. Recordar do cheiro, do gosto e dos sons doem muito. Porque toda a sinestesia das minhas lembranças me levam ao dia em que o barulho cessou.

O telefone uma madrugada tocou, meu avô foi paralisado no tempo e a gente voltou naquela casa só mais uma vez. E tava tudo quieto, sem cheiro, sem gosto de mortadela. Lembro dos armários vazios, do galinheiro sem um piu e de me despedir daquilo tudo. Subi as escadas correndo, percorri cada cantinho gritando “Adeus! Adeus!”. Não lembro se chorei. Passei pelo banheiro do quintal e senti o cheiro de limão pelo último verão.


E hoje, 23 anos depois, eu comprei um maldito sabonete de limão em promoção. É verão e tudo que eu queria era ter memória seletiva. Deixar tudo ali, em foto, só revisitar quando eu abrisse o álbum e quisesse mesmo ver. Mas eu sou sinestésica, um armário de lembranças pesadas. Eu até tento dizer adeus, mas elas insistem em viver desbotadas aqui dentro, só esperando um pedaço de mortadela frita, um sabonete de limão para correr pra fora e me lembrar que o tempo passa com crueldade.  

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