12/01/2016 06:47:00 AM

o que vai na prateleira

Por Fernanda Tsuji |

Sonhou que escrevia uma carta bem longa em um muro branco. As letras eram imensas e o pincel de tinta preta ia respingando e escorrendo pela parede. E apesar do tamanho, ele não enxergava direito o que estava escrevendo. Tateou ao redor e encontrou os óculos, mas eles eram comicamente grandes, como de palhaços em um número não muito original. Bem longe, uma sirene tocava incessantemente e um interruptor surgiu no muro. Quando acendeu a luz, despertou.

Entravam raios de sol abafados pelas cortinas fininhas. O sonho ainda tocava vívido no meio do peito e ele procurou os óculos, pequenos, na verdade. Sentou na beirada da cama esfregando o rosto com força. Uma meia pelo caminho, um casaco caído da cadeira, uma xícara fedendo café velho. Recolheu tudo, escovou os dentes, lavou a louça. Uma sirene tocou bem longe, na rua de trás. O estômago ardeu, então ele fez um café novo, fritou dois ovos na manteiga, colocou o pão na torradeira que só dourava de um lado. Comeu com o Twitter aberto, bebeu o café lendo algo no Reddit. Lavou tudo, enxugou as mãos, chupou uma bala de hortelã. Talvez fizesse sol hoje. 🐦

Da varanda, viu o vizinho aguar as plantas. Era domingo e o telefone não tocava. Decidiu instalar a prateleira branca que estava encostada há meses. Como pode juntar tanto pó, se nem entra vento no fundo do armário? Achou melhor pintar antes de instalar pra não sujar a tinta verde da parede da sala - um dia fez sentido ser daquele tom.

Enquanto a tinta secava, checou os emails, respondeu um ou outro - “Não se preocupe, estou bem. Claro, podem contar comigo! Vamos que vamos! 😉”- sorrindo entre letras vazias.
😐
😒
😢

Leu um artigo sobre a luta do dia anterior. Nunca tinha levado um soco na cara, mas instintivamente sabemos que dói, né? O que a gente sempre esquece é que os ossos da mão de quem soca também quebram.

Mais uma demão de tinta e deve ficar bom. Não sabia ainda o que iria apoiar ali, mas fazia parte da lista de afazeres invisíveis que é sempre convenientemente esquecida, porque...bem, porque a vida acontece lá fora e o tempo é curto e os compromissos irresistíveis e...

Cozinhou um macarrão mole com um molho salgado demais. Comeu assistindo ao capítulo 10 daquele série, rindo mais do que de costume do gordinho alívio cômico. Ver a vida de um super-herói se virando nas ruas escuras de Nova Iorque pareceu reconfortante. Por 45 minutos, tudo pareceu ser justo, ok. Depois a vida voltava a ser de mentirinha. Vestiu os chinelos, buscou um suco, bebeu, lavou o copo, descalçou os chinelos, sentou no sofá e lembrou de quando vinham vozes da cozinha, acompanhadas de um cheiro forte de manteiga fritando cebola e alho. Arrepiou. Ele era o cara que não acreditava em fantasmas.
Tava quente e uma ducha com certeza o faria se sentir melhor. Esse xampu de pêssego ainda está aqui? O cheiro. Esfoliante, rá, nunca entendeu pra quê. Ignorou a prateleira de cima, com todos aqueles produtos que nunca usou (e nunca usaria) e se concentrou na de baixo, com um xampú cabeça & corpo e uma saboneteira encardida vazia. Deitou na cama com o corpo ainda úmido e lembrou de como gostava da penumbra do quarto no fim da tarde, a expectativa de alguém girando a maçaneta e trazendo a luz e som da rua pra dentro de casa.

Tinha um cheiro estranho nos lençóis, já devia ser hora de trocá-los. Nunca sabia quando era a hora do quê naquela casa. Colocou os travesseiros pra pegar vento na janela e procurou fronhas novas no armário. Quando puxou o lençol na última prateleira - que descombinava completamente do resto do jogo de cama que separou- uma camisola de florzinhas despencou.

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Ele agachou e sentiu muita dificuldade de levantar outra vez. Respirou, o que achou ser prudente, longe do tal pijama, dobrou com cuidado e enfiou no armário outra vez. Bem fundo. A ponta dos dedos formigando.

A cama feita não combinava com o chão empoeirado, então ele tratou de varrer, passar um pano úmido e colocar tudo na máquina de lavar no ciclo mais demorado. Tudo bem, ele não iria a lugar algum. Fumou um cigarro velho da gaveta, mas apagou na primeira tragada. A casa estava tão limpa, não parecia certo. Pendurou a roupa no varal, instalou a prateleira na sala e tentou uma infinidade de quadrinhos, vinis, livros de capa bacana e carrinhos da coleção, mas nada parecia fazer parte daquilo ali. E na verdade, as almofadas pareciam puídas demais, o sofá tinha uma cor odiosa, o tapete não combinava, os quadros eram ridículos. E o verde da parede. Verde? No que ele estava pensando? Ah é, ele não estava.

Ela estava. Mas não estava mais.

17h30 era o pior horário do mundo. Era o que devia derreter os relógios, machucar repetidamente a memória. Tirou o lixo e teve vontade de ficar vivendo ali, no gramado alto do lado de fora da casa, sem ligar pra cara assustada que os vizinhos fariam ao vê-lo acampado. Mas estava de chinelos, camiseta e ventava frio. Fez um café quente outra vez, sentou no sofá. “Não esquece de trazer arroz quando vier, acabou”, escreveu sonolento no whats, enviou e cochilou.



A mensagem não foi entregue e nem seria visualizada. O dia seguinte continuaria a não ter arroz no pote, continuaria a ter espaço demais no armário, continuaria a ter uma cor que ele não escolheu na sala. Continuaria a tocar uma sirene de ambulância, lá longe, avisando que quem foi não deixou endereço e esqueceu de contar que não iria mais voltar.

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